quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Uma usina de inovações

Localizada no município de Quirinópolis, no sudoeste de Goiás, a usina Boa Vista é hoje um dos melhores exemplos do que esse setor pode esbanjar em termos de modernidade e excelência. Inaugurada em 2008 e integrante do grupo São Martinho, um dos maiores produtores de açúcar e álcool do país, a Boa Vista tem sua colheita 100% mecanizada e, por isso, não utiliza queimadas. No estado de São Paulo, a média de mecanização dos canaviais não passa de 55%. Toda a energia consumida é gerada pela própria usina. A eletricidade vem da queima do bagaço de cana, e dois terços da produção são revendidos. A despeito disso, a Boa Vista continua sendo capaz de tirar da cana os mesmos produtos de todas as outras usinas do país: açúcar e álcool. Isso, porém, deve mudar em 2011. Uma nova tecnologia permitirá que o caldo de cana da Boa Vista se transforme em matériaprima para um leque de produtos muito mais diverso e sofisticado do que as commodities que ela hoje produz. A detentora dessa fórmula mágica, que promete levar a indústria sucroalcooleira do país a outro patamar, é a Amyris, empresa de biotecnologia americana com quem o grupo São Martinho negociou a venda de 40% da Boa Vista em dezembro do ano passado.

Com sede em Emeryville, no Vale do Silício, onde está a renomada Universidade da Califórnia, em Berkeley, a Amyris nasceu quando um grupo de cientistas recebeu da Fundação Bill e Melinda Gates cerca de 42 milhões de dólares. O objetivo do financiamento era baratear a produção de artemisina, medicamento de combate à malária. O projeto não só vingou como, durante as pesquisas, os cientistas descobriram que a tecnologia desenvolvida também poderia ser usada para outros fins. Na prática, o que a Amyris sabe fazer e que interessa ao Brasil é modificar geneticamente organismos vivos como a Saccharomyces cerevisiae, a levedura usada no processo de produção da cerveja e também do etanol. Uma vez modificada, e em contato com o açúcar, essa levedura pode dar origem a uma série de moléculas. Uma delas é o farneseno, com a qual a empresa já detém conhecimento para produzir um diesel de origem vegetal que tem desempenho semelhante ao de origem fóssil. Com outra molécula sera possível produzir combustível à base de cana para aviões e até mesmo um substituto para a gasolina comum. A combinação de açúcar e farneseno também pode render substitutos para outros produtos que hoje têm origem fóssil, como lubrificantes para carros, solventes para a indústria de tintas e compostos para empresas de higiene e limpeza. Aliando biotecnologia de ponta com a cana tradicional, a Amyris quer transformar o Brasil em pioneiro num novo tipo de negócio: o das biorrefinarias.

A tecnologia é considerada tão promissora que muitos grupos brasileiros acompanharam os grandes fundos de capital de risco americanos e também fizeram aportes na Amyris. A Votorantim, por meio do fundo Votorantim Novos Negócios, o grupo Cornélio Brennand, que tem sede em Pernambuco, e alguns investidores de menor porte também são sócios da companhia. “Visitei uma série de empresas na Califórnia”, afirma Francisco Andrade, diretor de novos negócios do Cornélio Brennand. “Nenhuma delas era tão revolucionária.” Os grupos Cosan, Bunge e a Açúcar Guarani também assinaram, em dezembro, acordos para se beneficiar da biotecnologia.

O principal centro de desenvolvimento da empresa está nos Estados Unidos. É lá que cerca de 150 biologistas moleculares se esmeram para modificar as leveduras. Estima-se que aqui haja um número semelhante de especialistas na mesma levedura — mas no país inteiro. Apesar da discrepância do lado científico, o Brasil é essencial para que o projeto da Amyris se concretize. A empresa precisa de açúcar abundante e barato o suficiente para dar escala à sua produção. É a cana, mais que qualquer outra cultura, a fonte que oferece a melhor relação entre potencial energético e custo. Além disso, para tornar factível a tal produção em escala, também é preciso ter um conhecimento tecnológico há décadas desenvolvido por aqui. “Pensamos em países como Índia e Indonésia, mas nenhum outro lugar conhece tão bem a cana-de-açúcar”, diz o executivo belga Roel Collier, de 36 anos, responsável pela operação da Amyris no Brasil.

A operação está sediada em Campinas, no interior de São Paulo, local estrategicamente escolhido por estar próximo da Unicamp, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ) e do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), ambos em Piracicaba.

Foi nessas instituições que a Amyris recrutou boa parte de seus 60 funcionários. São químicos, bioquímicos e engenheiros agrônomos, mestres e doutores, que trabalham para fazer com que as leveduras modificadas pelos colegas da Califórnia reproduzam aqui, inicialmente em tanques de médio porte, o mesmo comportamento observado em frascos de até 3 litros. “É como se lá elas estivessem em um hotel de luxo”, diz Fernando Reinach, diretor da Votorantim Novos Negócios e um dos mais respeitados biologistas moleculares do país. “Aqui é que nossos cientistas as colocam para trabalhar no mundo real.” Os testes da Amyris hoje acontecem em tanques de 6 000 litros e também de 60 000 litros. A operação na usina Boa Vista deverá ter quatro tanques de 600 000 litros cada um e deve começar no ano que vem.

Enquanto parte dos pesquisadores cuida dos detalhes da produção, outros profissionais trabalham para que o diesel verde da Amyris seja aprovado pela ANP. Nos Estados Unidos, uma mistura de 20% dele ao diesel convencional já passou pelo crivo da poderosa agência de proteção ambiental americana (EPA, na sigla em inglês). Aqui, a última prova de fogo do combustível começa em fevereiro, quando seis ônibus da frota da cidade de São Paulo testarão nas ruas o desempenho de uma mistura de uma parte de diesel de açúcar e nove partes do combustível comum. Esse novo combustível tem uma grande vantagem: ao contrário do etanol, ele não exige modificações nos veículos nem na infraestrutura de distribuição atuais. O plano dos executivos da Amyris, porém, é que, num primeiro momento, as usinas parceiras que estão investindo na tecnologia produzam menos o diesel verde e mais outras especialidades químicas, que têm preços mais atraentes. “Quanto mais elaborado o produto, maior a margem que dividiremos com as usinas”, afirma Collier. Assim como uma refinaria tradicional, as usinas poderão potencialmente transformar a garapa em uma vasta gama de opções, que irão muito além do açúcar e do etanol de hoje.

Os testes já vêm sendo realizados há mais de dois anos, mas é claro que ainda existem obstáculos a superar. Há competidores dentro e fora do Brasil buscando a produção de combustíveis de segunda geração usando métodos diferentes. Como em todo negócio baseado em tecnologias de ponta, a Amyris pode ficar para trás na corrida. Um exemplo da crescente procura pela cana-de-açúcar brasileira foi a joint venture recém-anunciada pela gigante Shell com a Cosan, maior grupo sucroalcooleiro do país. Entre outros interesses, a Shell quer ter acesso à matéria-prima vegetal do país para avançar em suas pesquisas na area de novos combustíveis. John Melo, presidente mundial da Amyris, mantém o mesmo nível de otimismo demonstrado quando visitou usinas brasileiras pela primeira vez, quase três anos atrás. O que na época parecia um sonho distante e improvável — produzir gasolina e diesel de açúcar —, hoje está cada vez mais perto da realidade. “Temos uma das melhores equipes de cientistas do mundo e fizemos grandes investimentos”, diz o português Melo. “Também tivemos muita sorte ao fazer algumas escolhas, como a de vir para o Brasil.” Se as biorrefinarias virarem realidade, o país também poderá dizer que teve a sorte de ser escolhido pela Amyris.

Fonte: revista Exame

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